Qigong e Tai Ji Quan

Por: Anderson Rosa

É bem conhecida de todos, a afirmação de que Tai Ji Quan (Tai Chi Chuan), sem qigong (chikung) não é Tai Ji Quan1. No entanto, convém falarmos um pouco mais sobre este tema, que para alguns, ainda pode parecer misterioso demais. Vamos antes de mais nada, saber um pouco mais sobre o termo “qigong”.

Qigong é literalmente, trabalho de energia, onde Qi=energia e gong=trabalho. Portanto, qigong é a técnica utilizada para desenvolver-se a energia no corpo, ou técnica para manipular/trabalhar esta energia. Quando um artista marcial aplica um golpe, quebra uma tábua ou entorta uma barra de ferro, ele está aplicando o resultado deste trabalho de energia (qigong). Dessa forma, podemos compreender de modo simples que o qigong é uma técnica (qigong), dentro de outra técnica (tai ji quan).

Muitas pessoas, quando começam a praticar o Tai Ji Quan,tem como objetivo a boa saúde, e a longevidade. Estas são apenas duas das benesses pretendidas pela prática. Outros objetivos podem ser citados: eficiência no combate, expansão da mente, melhora da memória de longo prazo, e por que não, aprimoramento espiritual (este último é um objetivo mais raro na procura pelos ocidentais). Porém, é importante dizer e alertar que tais objetivos só podem ser alcançados se o qigong for parte integrante da prática do Tai Ji Quan.

Se alguém afirma ser praticante do Tai Ji Quan por muitos anos, e ainda é fraco, instável e doentio, podemos afirmar com grande grau de certeza que a prática realizada por esta pessoa não possui qigong como parte integrante da prática do Tai Ji Chuan. Um dos motivos disso acontecer, é o distanciamento dos atuais professores das origens do Tai Ji Quan.

Antes de ser popular no Ocidente, o Tai Ji Quan era uma prática inserida num contexto religioso, normalmente taoísta, budista ou confucionista, ou ainda num misto destas três vertentes. E quando veio para o Ocidente na bagagem de professores que deixavam para trás não apenas um País que limitava e perseguia cada vez mais práticas ancestrais, em especial aquelas que possuíam um veio religioso ou espiritual, o Tai Ji Quan acabou por ser “lavado” mesmo que sem esta intenção, de muitas partes que constituíam o seu todo.

Embora fale aqui de forma especulativa, sem um embasamento teórico/acadêmico formal, devo salientar algumas observações que fiz ao longo do meu contato com imigrantes chineses. Algumas pessoas, quando fogem de um regime totalitarista como era o regime chinês há algumas décadas (e ainda é em alguns aspectos), fazem questão de enterrar o seu passado. Deixam atrás de si não apenas o regime que lhes oprimia, mas em muitos casos deixam também qualquer traço que lhes conecte àquela cultura que lhes trouxe amargura e profundas perdas.

Com isso, é comum encontrar entre os imigrantes chineses, aqueles que abandonam suas raízes religiosas, e onde no quarto antes repousavam cânones budistas ou taoístas, agora repousa um exemplar da Bíblia. Lábios que antes proferiam a sabedoria de Confúcio agora citam as Cartas de Paulo.

Bem, é hora de retomar o caminho original do texto…

Para sobreviverem numa terra estranha, estes imigrantes viram como uma possível fonte de renda a prática e o ensino das artes marciais. Em alguns momentos e alguns lugares, sujeitos mais uma vez à uma legislação que reinava sobre eles, foram proibidos de praticar as artes marciais mais externas com medo de serem presos ou extraditados para o seu país de origem. Nesses casos, como aconteceu nos E.U.A., os imigrantes chineses ofereceram o Tai Ji Quan como uma “dança” que proporcionava saúde e bem-estar.

Bem, nesta nova roupagem fica evidente a dificuldade que estes primeiros professores tiveram para passar não apenas os conceitos pertinentes ao Tai Ji Quan, mas também técnicas não tão evidentes como o Qigong. Somados à isso, também vieram para o Ocidente muitos oportunistas que longe de possuírem domínio sobre a Arte, desejavam apenas possuir domínio sobre os bolsos dos seus alunos, oferecendo uma prática “exótica do oriente distante”, se opondo ao caos da vida ocidental.

Feitas estas observações, fica mais do que evidente que muitos praticantes de Tai Ji Quan no Brasil e no mundo em grande parte, não passam de coreógrafos com alguma competência, porém sem nenhum benefício evidente advindo da prática do Tai Ji Quan. Note-se no entanto, que nosso objetivo não é criticar este ou aquele professor ou estilo, mas sim perceber que é muito mais comum do que se pensa, a prática inconsistente do Tai Ji Quan, sem alcançar qualquer dos resultados tão alardeados em sites e revistas mundo afora.

Talvez a característica mais impressionante do Tai Ji Quan seja o desenvolvimento de habilidades muito acima de outras artes de combate. Devemos lembrar aqui que o Tai Ji Quan é conhecido como Boxe das Sombras. A superioridade do praticante faz dele um alvo cobiçado mas quase inatingível em combate e quando todos os inimigos jazem derrotados ao seu redor, apenas um último inimigo se mantém em pé com sorriso zombeteiro quase invencível. Este é o “inimigo interno”. Esta é a sombra contra a qual se deve lutar e vencer. Depois de derrotar o mundo, o praticante deve derrotar a si mesmo. E sabedor disso, o praticante percebe que não há inimigo externo contra o qual valha à pena lutar, pois o alvo último está dentro, e não fora. Por isso, no seu treino luta apenas contra sua própria sombra, numa estranha coreografia.

Na prática do Tai Ji Quan como ferramenta de prática espiritual, é que se evidenciam ainda mais as qualidades trazidas pela prática intrínseca do Qigong. Este desenvolver pessoal pode ser dividido em 3 estágios: o cultivo do Jing (essência) para tornar-se Qi (energia), e cultivar o Qi, para tornar-se Shen (espírito). E finalmente, cultivar o Shen para que ele retorne à sua Origem, o Tao (o Vazio). Segundo Wong Kiew Kit, o “Qigong é, pois, a ponte que liga o físico (jing) ao espiritual (shen)”2. Esse desenvolvimento é ilustrado na prática do Tai Ji Chuan, no momento inicial da prática, em que o estudante parte da posição que designa o estado de “vazio” e no final, onde ele retorna exatamente para a mesma posição, dando a ideia de ciclicidade.

Um bom professor de Tai Ji Quan deve sempre estar atento para que a prática não seja apenas um conjunto repetições bem elaboradas e bem executadas, numa “coreografia” de Tai Ji Quan, sob a pena de nunca passar além disso, uma mera “coreografia”.

Como conselho aos praticantes do Tai Ji Chuan, podemos sugerir o estudo e a incorporação à sua prática de registros feitos a esse respeito por grandes mestres como: A Canção dos Segredos para o Treinamento, de Wu Yu Xiang (1813-1880); A Fórmula dos Cinco Caracteres de Li Yi Yu (1832-1892); Os Dez pontos Importantes do Tai Ji Quan, de Yang Deng Fu (1883-1936) e Os Cinco Níveis de Habilidade no Taijiquan, de Chen Xiaowang (1945-…)3.

Sugestão de Leitura:

Kit, Wong Kiew,O Livro Completo do Tai Chi Chuan, Ed. Pensamento, 1996, São Paulo.

Chuen, Mestre Lam Kam, O Caminho da Energia, Ed. Manole.

Cherng, Wu Jyh, Tai Chi Chuan – A Alquimia do Movimento, Ed. Mauad, 2000.

Chia, Mantak e Li, Juan, A Estrutura Interior do Tai Chi, Ed. Pensamento, 1996.

Liao, Way Sun, Clássicos do T´ai Chi, Ed. Pensamento, 1990.

1A partir deste trecho, iremos nos referir a Tai Chi Chuan e Chikung como são escritos em pin yin, Tai ji Quan e Qigong, respectivamente, por corresponder ao padrão atual de transliteração da escrita chinesa. – Nota do autor.

2Kit, Wong Kiew,O Livro Completo do Tai Chi Chuan, Ed. Pensamento, 1996, São Paulo.

3Este último com tradução de Eduardo Molon ( molon@taijiquan.pro.br ), publicado originalmente em http://taijiquan.pro.br , e também na Revista Tai Chi Brasil nº1 e seguintes.

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